O que a gente entrega quando se entrega?

Definição de "Entrega" no idioma em que eu mais sei fazer isso. Nota para a ironia do ponto 5.

São Paulo, 28 de julho de 2019

Sabe quando você se apaixona e entrega muito de si ao outro? Eu sempre vi que entregamos companhia, entregamos nosso tempo e, claro, nossa confiança. Entregamos porque é nosso, tudo isso já habita dentro de nós. O carinho que oferecemos ao outro, o cuidado, a empatia e mesmo, para quem chega no mais sublime, o amor que damos ao outro são presentes que saem do nosso interior para aquele que é o interlocutor desses sentimentos. Na hora da despedida, é difícil retomar todos os sentimentos que já tinhámos em nós e foram dedicados ao outro. Na minha visão, como os sentimentos são recursos renováveis, eles não são mesmo retomados. Eles vão renascendo e os vamos dedicando novamente a outras paixões, por outras pessoas e por nós mesmos.
Existem também entregas de elementos exteriores a nós. Já parou pra pensar naquilo que você dedicou a alguém, que não propriamente seu mas compunha uma parte da sua vida? Meu ponto aqui hoje é pensar sobre o que dedicamos e precisa depois ser ressignificado para voltarmos a ter contato sem dor. Pode ser aquele perfume que te lembra de quem já não está mais. Aquele lugar que você tanto gosta, mas não consegue mais frequentar porque cada canto te desenha uma lembrança. Aquela música que te traz lágrimas e sorrisos ao mesmo tempo e você não sabe se quer ouvir on repeat ou excluir da lista.
Para mim, ambas as formas de entrega são interligadas. Quando percebo que estou entregando meus sentimentos, já entreguei há tempos uma série de referências, lugares e momentos importantes para mim. Uma vez, quase entreguei minha faculdade. É meu lugar favorito em São Paulo. E mesmo assim, não consegui me sentir a vontade ali porque tudo me fazia lembrar de uma história com inicio e final indefinidos – a tortura de qualquer geminiana. Me afastei de mim e de lá, pra me reencontrar em outra cidade. Me reescrevi. Quando voltei, temi que as memórias ainda estariam a minha espera. Estavam. Mas com tantas memórias novas e com uma nova Morena construída, elas antigas foram bem recebidas como parte do meu caminho até ali.
Agora, nessa última vez, eu estou no desafio de ressignificar um novo espaço. Eu entreguei um idioma. É difícil traduzir o que isso significa para uma amante da linguagem. É como entregar um lugar. Cada idioma que eu falo é, para mim, um espaço em que desenvolvo outras partes minhas. Eu entreguei o meu favorito. As músicas que canto nesse lugar. O que eu danço nesse lugar. O que eu sinto nesse lugar, que é muito mais romântico e idealista do que o que eu sinto em português. Sim, entreguei uma das minhas partes favoritas. Favorita porque se relaciona ao que mais gosto em mim e mais gosto no mundo. E entreguei porque queria compartilhar. Mas o lance da entrega é que ela é sempre incondicional. As vezes a gente dá sorte do outro entregar de volta. As vezes não. E tudo bem. O importante é que a cada entrega a gente se expande e o que há de melhor em nós se multiplica.
Assim como me afastei do primeiro lugar de memória, há um ano atrás, talvez me afaste do meu lugar-idioma por uns tempos. Tome um ar, um respire, crie novas conexões em outros lugares para me lembrar de “não disputar grão de areia num Universo infinito”. Talvez eu já tenha maturidade para reconhecer que o que entreguei e dividi com o outro não esvazia meu estoque de bons sentimentos e nem me priva do meu lugar favorito. Mas também já me conheço o suficiente para saber que quando entrego muito, tenho de dar um tempo para minha natureza recriar seus elementos.
Por isso, espero que se você que está lendo precisar deixar florir em ti novamente o que entregou a alguém, não se esqueça de que essas novas flores vão nascer mais forte e mais bonitas, porque é exatamente assim que você está depois de tudo que viveu e aprendeu até aqui. Veja nessa capacidade de entrega toda sua capacidade de sentir e orgulhe-se por isso. E lembre-se de que dedicar ao outro não tira de você o que te faz brilhar os olhos e encantar-se com o mundo. Ao contrário da expressão 5 do dicionário, é o que nos faz mais vivos e que continua a iluminar onde passamos.  

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