Precisamos falar sobre o Coringa



São Paulo, 12 de outubro de 2019.

Este é um texto se propõe a discutir, sem spoilers, situações retratadas no filme Coringa a partir dos problemas infelizmente presentes há tempos em nossa sociedade, agravados pelas atuais posturas populares, Estatais e mercadológicas. Sendo mais sincera, a única pretensão é compartilhar como meus sentimentos me forçaram a enxergar as dores do mundo, antes em parte naturalizadas por ignorância ou autoproteção. Há também aqui de aumentar o impacto da obra ou de cenas correlatas, para que através da arte a gente consiga encarar a vida e se importar com o que não pode ser aceito.

Assisti o filme do Coringa no dia das crianças. Atuação, filmagem, roteiro e som impecáveis. Chorei do início ao fim. Apesar de ser uma ficção do universo dos quadrinhos, foi o filme de “herói” mais próximo à realidade que já assisti. E por essas aproximações a gente precisa falar sobre ele.

Chorei por dois dias seguidos e só fiquei melhor depois da terapia. Parece exagero, eu sei. Como é que a gente pode se abalar tanto por um filme? Mesmo que em várias cenas um personagem sendo espancado injustamente (vale ressaltar que não considero espancamentos justos, mas há casos de crueldade pura que pedem o adjetivo). Mesmo que seja porque o Estado e a família não olharam por ele. Mesmo que ele seja um símbolo de quantos vilões não nascem maus, mas são levados ao extremo da humilhação, dor e a abandono e, cansados de serem invisíveis à sociedade, revoltam-se. Mesmo que isso não seja tão longe da nossa realidade. É, pensando bem, não é tão exagero assim. Afinal, chorei por tudo que me faz parte da vida adulta equilibrada conhecer e naturalizar.

Eu fiquei abalada pelo óbvio: o mundo pode ser extremamente injusto. Nossa sociedade pode ser absurdamente cruel. O Estado liberal, na mão de milionários, é incapaz de tratar com a mínima empatia as necessidades sociais mais básicas. Me indignei com a possibilidade de os contratos sociais não valerem nada (isso que a gente chama de leis, direitos humanos e moral). E me doeu na alma me deparar com a possibilidade de que algumas pessoas durante sua existência não vão experimentar o amor e a felicidade.

Chorei o filme todo. Continuei chorando quando acabou. Cada lágrima era uma tentativa de secar o mar de dor em que eu estava me afogando. Chorava pelas dores daquele retrato de uma existência tão distante da minha. Chorava pelas dores de todas as outras realidades muito mais próximas do meu cotidiano, do mundo real, histórias com que eu convivia e antes não tinha visto com essa proporção. Chorava meio constrangida por sentir que não devia atravessar a alegria de ninguém com a minha tristeza, ainda mais num feriado. Chorava por não conseguir levar a minha felicidade àquelas vidas que não a conhecem. E chorava porque parecia impossível voltar a ser feliz num mundo em que tanta gente sofre.

O filme - o que me marcou

Nem todo vilão (ouso dizer que quase nenhum) nasce mau. Arthur, antes de transformar ou ser transformado no Coringa, é um homem com um distúrbio que faz com que ele ria em situações que não correspondem a esse sentimento. Isso é extremamente simbólico. Arthur é um deficiente, marginalizado, renegado pelo pai - seja ele quem for, invisível à sociedade. Ele é mais um dos muitos que, por uma força maior que ele mesmo, tem de sorrir quando não é isso que tem necessidade de expressar ao mundo.

Durante todo o filme, expressões de carinho são mínimas e não é mencionado o termo amor. Uma vida em que afeto e cuidado são ausentes. Em que a guerra pela sobrevivência toma proporções (se Deus quiser) “distópicas”. Em parte isso é resultado das escolhas e posturas da família envolvida - uma mãe submissa e um pai cruel/ausente. Por outro lado, também é reflexo de uma sociedade egoísta, mídias cruéis e competitivas, Estado voltado para as classes altas e que não se dispõe a fornecer os serviços de bem-estar social mais básicos - como assistência e acesso a remédios para transtornos psicológicos.

Não é o filme que vai criar novos Coringas. Somos nós. É a nossa banalização da violência. É a nossa omissão. É o nosso hábito de transformar em piada e meme tudo que nos incomoda. E, muito pior, é o não-incômodo com a dor alheia, com a injustiça sobre um grupo ou indivíduo com o qual não nos identificamos. Nossa naturalização da dor do outro, medicalização da nossa própria dor, aceitação passiva das desigualdades faz de cada cidade uma potencial Gothan. E diferente das produções da DC, aqui os milionários não tem pátria e não ficarão para defender a cidade.

A vida - como seguir

E como não perder a fé na humanidade? Os dias que se seguiram às minhas reflexões foram uma oportunidade para que eu sentisse o que é perder a fé. Estava angustiada e sem esperança com qualquer possibilidade de melhora no mundo. Então, como não desistir de tudo? Como seguir meus dias sem cair na hipocrisia de naturalizar o que é claramente inaceitável para uma sociedade que se propõe a moderna e sem cair em depressão pela clara impotência frente a dimensão dos problemas do mundo?   

Observando e agindo. Começa por enxergar a própria humanidade, como grupo e como qualidade. Porque ela existe. Em nós e no mundo. Na arte. No abraço. Na música. Na educação. No amor. E é por ela que vale a pena lutar todos os dias. É vendo o que está a nossa volta que entendemos que segue havendo crescimento, melhora e que os sorrisos podem ser sinceros.

O mundo é cruel, mas a vida é incrível. Mesmo no meio da minha dor encontrei o apoio de pessoas que não sentiam o que eu sentia mas respeitaram com carinho esse momento. E mesmo os que não me conheciam me fizeram lembrar do bem que há no mundo.

Um moço extremamente gentil trabalha numa loja de jogos no shopping em que estava. Me viu chorando e me levou um pirulito. "Não chora, moça, é dia das crianças." Não consegui agradecê-lo como deveria. Mas espero que ele um dia saiba que pessoas como ele melhoram o mundo e evitam que mais pessoas passem pela vida sem contato com bons sentimentos. Mais um herói do dia a dia.

E são desses heróis que precisamos. Gente que age. Dessas ações que ninguém vai ver. Os que salvam o dia sem câmeras e matérias de jornal. Os que não precisam combater vilões, porque batalham diariamente pra evitar que vilões se formem.

Dialoguei com meus pais e amigos na tentativa de me recuperar, e acabou sendo um exercício não intencional de encarar a realidade. Ver as dores de quem está comigo diariamente bateu ainda mais forte. Ver que gente muito boa e feliz se identifica com dores escancaradas na tela de cinema é meio chocante. E ver como eles seguem a vida é meio inspirador. Entender, citando meu psicólogo, que a gente pode ser como o beija flor no incêndio de sua floresta. Por menor que seja sua ação, é inaceitável não agir se sua casa está pegando fogo.

Ainda tem muito em mim que dói ao falar sobre isso. Como me dói passar por um morador em situação e rua e não fazer nada a respeito. Ainda me dói perceber que os dias se passaram e retomei minha vida "como se nada tivesse acontecido". Mas sei que isso não é verdade. Entendi e senti mais das dores do mundo e me comprometi mais a mudar por elas. Mesmo com a pouca água que posso levar nesse incêndio.  Mesmo que eu não posso levar água em cada foco em que passar. 

Espero que com essas palavras façam parte disso, pra marcar em mim e em você nossa capacidade e responsabilidade de fazer da nossa casa - o nosso mundo - um lugar melhor.  Até que um dia, em fim, cada Arthur tenha uma vida melhor e nossa sociedade não crie mais nenhum Coringa.

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