Do Brasil que há em mim - reflexões do pré-aniversário na quarentena


Sou filha de uma família muito brasileira. E dona de uma alma muito latina. Esse é o primeiro ano que eu não vou dançar no meu aniversário. Gosto de dançar bachata ou reggaeton em algum lugar de São Paulo. Ouvir e falar espanhol, viver esse meu lado que gosto tanto. Mas na quarentena somos todos forçados a rever planos. E parei para olhar um lado meu que as vezes nem percebo. Sou brasileira.

Sou filha de um pai nordestino e uma mãe do interior paulista. Filha de quem lutou contra seca, desigualdade, preconceito e dificuldades da cidade grande. Sou filha da luta. Luta inclusive pra nascer: minha mãe ja tinha 40 anos quando cheguei. Sou filha de guerreiros que se machucaram muito nas lutas que a sociedade patriarcal brasileira perpetua.

Sou filha de quem escuta MPB, samba, criticava sertenajo mas mudou de ideia com os anos. Acordava com meu pai cantando Chico Buarque e hoje janto com minha mãe ouvindo Iza. Sou também filha de uma nação atropelada por suas próprias contradições. Filha da luta pela educação, do sonho de uma condição mais estável, de mais igualdade entre as pessoas. E várias vezes repito os padrões dos meus pais - os biológicos e a nação. Sou filha de pais muito inteligentes mais pouco instruídos. Pais que amavam reunir a família em casa para comemorar qualquer coisa. Pais que se emocionam a cada vez que eu aprendo. E que sempre foram muito receptivos em aprender comigo.

Meu pai escreve com frequência. Mistura um pouco as palavras, as vezes saem frases meio confusas. Talvez por isso mesmo, cada uma é completamente cheias de sentimentos. Vem naquela letra com traço forte no papel, sempre meio itálica, rabiscada sobre si mesma, como sâo seus sentimentos. Trazem essa força do sertão que nunca saiu dele, do homem nordestino, que pouco se permite olhar para sentimentos (nunca em público). Faz sentido, não há tempo-espaço para isso quando a sobrevivência se faz uma questão muito mais urgente.

Minha mãe viveu transições que só hoje eu enxergo com mais clareza. A superação da sua própria criação machista e limitadora. O enfrentamento de um mundo com poucas portas abertas às mulheres mais velhas. A reconstrução de si, a construção do amor próprio, a perda de uma filha, as limitações financieras que a prenderam numa relação abusiva. (Tudo assim no substantivo porque são processos modelo, desses que os filosofos usariam de modelo com letra maiúscula.) Minha mãe é a de mulher culta apesar do pouco acesso a qualquer coisa; a mulher forte apesar do pouco apoio; a mulher cheia de fé apesar das inúmeras provocações e a mulher mais humana que conheço, mesmo com uma vida muito sofrida.

Ela uma vez me disse que por um tempo tinha vergonha de falar comigo porque ela não sabia se expressar bem e eu falava de um jeito muito dificil. Por isso aos poucos ela ia participando menos das conversas em casa. E acabou que nos afastamos durante minha adolescência. Doeu na hora, mas só depois de algum tempo eu tive a dimensão da profundidade dessa desabafo. A desigualdade da minha nação ali, na minha casa, na minha frente, me afastando do ser humano mais angelical que eu conheço.

Mae, me perdoa. O pouco conhecimento que eu fui adquirindo sem o equilíbrio emocional me afastaram de você por mais tempo do que eu reconheci. Me desculpa ter achado que você não entenderia meus problemas. Me desculpa ter reforçado que alguns debates são masculinos quando eu só os tinha com meu pai. Me perdoa por tanto tempo que a gente não teve como se ajudar a enxergar nossa força e nossa independência. Me desculpa todas as vezes que eu não estava lá por ti, que eu não enxerguei que você não se sentia suficiente. Você é a melhor pessoa da minha vida, e sempre foi e sempre vai ser tudo de melhor que pode existir.

E como mulher, peço essas desculpas a mim também. Por quando me achei fraca, por quando me achei incapaz, por quando achei que eu não valia meus próprios cuidados. Por quando deixei que qualquer história fosse mais importante que a minha.

Cabe também as desculpas ao papai, de quem eu sempre esperei compartamentos heróicos e reforcei uma cobrança que ele já fazia sobre si mesmo. Papai, você é o melhor pai do mundo, e nunca precisou ser perfeito para isso. Me desculpa quando eu te fiz pensar que precisava de mais do que eu já tinha. Hoje eu sei que sempre tive porque você sempre esteve comigo. Obrigada por sempre estar. 

E tudo isso tem muto a ver com ser brasileira. Tem a ver com crescer onde a desigualdade afeta mulheres pobres em todos os níveis das suas vidas. Tem a ver com meus pais não conseguirem mais entender minhas lições de casa quando eu entrei na escola particular. Tem a ver com eu saber que ganhava mais do que minha mãe no meu segundo emprego e ter de ouvir do mundo que isso é merecimento. Tem a ver com a dificuldade do meu pai em perdoar pessoas porque ele foi ensinado a colocar o orgulho acima das outras questões. Tem a ver com ele ter dado a vida para que eu fizesse faculade e chegasse a uma estabilidade maior do que a que ele mesmo possui. Tem a ver com estar insegura porque se minha mãe perder o emprego antes de ter sua aposentadoria, vai ficar mais difícil conseguir a cirurgia de que ela precisa. Cada experiência que tenho desde que nasci até hoje está atravessada por ser brasileira, que presenteia ou impoe uma vida de luta, beleza, dor, desigualdade e superação.

Ser filha dos meus pais e do meu país também significa olhar para todo esse cenário e seguir lutando. Se expressa em ligar pra eles todos os dias e sentir os abraços mesmo por telefone e os sorrisos quando contamos sobre os dias. Inclui dividir os raios de Sol e olhar as flores que nasceram naquele vazinho no quintal. Se manifesta em "juntar um dinheirinho pra comprar a ração pro gato do vizinho, ele ta apertado de grana também". Reflete-se num amor incondicional mesmo de quem foi autoditada para aprender o que era amar. Alimenta-se da força desses dois, que sai não sei de onde, mas que me preenche desde que eu nasci. Ser filha de todo esse amor (se) escreve (n)a minha vida.

Por isso no meu aniversário (e em cada dia antes e depois dele) eu tenho um orgulho imenso de celebrar quem eu sou hoje e agradecer quem me fez assim. Celebro ambos, que entre erros e acertos fizeram, sem dúvida, seu melhor para que eu fosse feliz. E conseguiram.

Nesse aniversário eu achei que sentiria falta de me conectar com meu lado latino. Falta da música e dança, da comida, da sensualidade, dos debates, da energia de (Re)volução que marcam minhas experiências nesse lugar em que me vejo no mundo. Mas olhar com mais carinho e reverência ao sangue e história brasileiras nas minhas veias, nesse momento em específico em que amar o Brasil vem com mais medo e dor, se revelou mais importante. Reconhecer em mim o quanto tem de tudo que me meus pais viveram e meu país vive me faz pertender a esse lugar mais do que antes, e ao mesmo tempo, me faz mais dona de mim. Porque saber quem sou passa por saber quem me formou e como isso aconteceu. Passa pela consciência das limitações e perrengues da minha criação. Passa por reforçar que minha familia é incrivel exatamente porque no meio do furacão ela me deu todo amor que tinha. Isso nunca faltou. E eu tenho certeza que é por ser filha dos meus pais, por ser esse mix de Brasil e América Latina entre a luta e a dança, que de qualquer lugar do mundo (inclusive do meu quarto) eu já ganhei o melhor presente de (todos os) aniversário(s). Obrigada, meus pais, eu amo vocês.






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